Eu estava na primeira série do ensino fundamental.
Tinha 7 anos.
Pense num terror. Era uma escola pública. Uma turma mista de
meninos e meninas, e naquela época, não sei por que cargas d’agua, os meninos
achavam que podiam subjugar as meninas. Pensavam ser superiores. Tratavam as meninas com desrespeito. Era uma outra
época...
Sei que hoje não é mais comum, não se vê mais isso em nossa
sociedade, mas na minha infância, isso era algo acontecia. Existiam coisas assombrosas, homens ganhavam salários maiores que as mulheres, havia uma tal cultura do estupro, e muitas coisas que hoje sequer ouvimos falar! Graças a deus...
Dentro da sala de aula, na presença da professora, os meninos ficavam quietinhos no mundo deles. Mas na hora do recreio, sem a presença de
algum adulto para supervisionar-nos, eles tocavam o terror sobre as meninas.
Eram os 30 minutos mais infernais da minha vida. Pareciam
uma eternidade. Deve ter sido baseado num recreio desses que Einstein começou a
desenvolver a Teoria da relatividade...
Para buscar defender-nos, as meninas tentavam sempre formar
pequenos grupos e ficar juntas na hora do intervalo, afinal nem imaginávamos o
que poderia acontecer se algum menino nos encontrasse sozinha.
Na minha classe tinha um menino que era filho do pastor da Igreja
Assembléia de Deus e ele dizia ser apaixonado por mim. A mãe dele trabalhava em
um pequeno supermercado, então todos os dias ele me dava uma caixa de chicletes e outra
de uma goma de mascar. Ele, sendo apaixonado por mim, como o próprio se dizia,
tinha como forma de demonstração desse amor, correr atrás de mim na hora do
recreio para me bater! Já pensou se eu caso???
Uma, das inúmeras vezes que eu estava correndo dele, eu cai
e me ralei da cabeça ao pés! E a única coisa que eu conseguia pensar era: Se um
dia eu tiver uma filha, eu nunca vou colocar ela na escola!! Nunca vou! Nunca !
Nunca!
Eu tinha pesadelos com aquele menino! Sonhava que ele era
filho do Lúcifer! É sério! Eu detestava ele e até hoje recuso chicletes quando
me oferecem. Digo que me dão dor de cabeça. (Se alguém que me conhece, e já
tiver me oferecido chicletes, vai se recordar)
Bem, já estávamos quase no final do primeiro bimestre quando
ELA chegou! Uma menina chamada Dalva.
Veio transferida de outra escola. Ela era repetente.
O que chocou a todos é que ela era careca! Todas as meninas
usavam saia e tinham cabelo comprido. Dalva também usava saias, mas seu cabelo,
apesar de já estar começando a crescer, ainda era muito baixinho.
Soubemos que sua mãe, uma mulher muito brava, raspou sua
cabeça por ela ter repetido de ano.
Dalva era diferente das outras meninas. Não só pela cabeça
raspada. Eu morava em Santana no Amapá, nosso tom de pele era moreno, mas Dalva
tinha uma pele bem clara, só que estava grossa, queimada de sol. Era porque ela
trabalhava na roça com sua família. Ela tinha olhos azuis e cabelos bem claros.
Mas suas feições eram endurecidas, brutas. Ela tinha o corpo todo musculoso
(trabalhava carregando peso) e parecia muito mais velha do que a idade que
tinha. Acredito que ela deveria ter, pela série escolar, uns 8 anos, mas
aparentava ter uns 14.
Ela sentou perto das meninas e nos contou suas histórias. Da
roça onde trabalhava com a família, das surras diárias que levava da mãe. Do
tio com problemas mentais. Do pai que não conheceu e da vó, que era a chefe da
casa.
Até que tocou o maldito sinal. Aquele que abria as portas do
inferno. E fomos todas para o nosso martírio diário.
Naquele dia tínhamos mais uma vítima entre nós: A Dalva. Um
prato cheio para os misóginos de plantão!
Eles adoravam observar nossas
fraquezas, nossas vulnerabilidades e ter um ponto no qual se apegar para nos
atingir!
Ei magrela! Ei cabelo de Bombril! Ei preta do Codó! Ei
Assombração! Ei putinha escrota!
Era o dia da estreia da Dalva.
Nós todas sabíamos disso. Menos ela.
E nosso coração estava apertado. A gente sabia o quanto
aquela menina já era sofrida. O quanto a vida já a castigava. O quanto a mãe, a
quem a gente corria no final do dia e sempre encontrava amparo, no caso da
Dalva, também representava uma agressão.
E quantos pontos vulneráveis ela tinha! Ela seria um prato
cheio para eles!
Minhas mãos estão geladas de lembrar a tensão que senti
naquele momento. E eu e as outras meninas nos olhávamos num misto de
cumplicidade e desespero. E Dalva falava sorridente conosco, afinal ela estava
sentindo-se acolhida e hoje, adulta, percebo que ela talvez, na sua jovem vida,
nunca tivesse se sentido assim antes.
E o grupo de meninos se aproximava.
O menino mais violento vinha na frente. E o filho de Lúcifer
ao seu lado. Ele sempre andava à direita do pai... E os demais meninos
distribuídos ao redor deles.
Novamente vi uma demonstração presente da Teoria da
Relatividade. Deve ter se passado umas três luas até a chegada do grupo de meninos...
Dalva continuava falando animadamente, mas ninguém conseguia ouvir a
sua voz.
Até que sua fala foi interrompida por uma voz que nos era tão familiar
e muito, muito assustadora.
- O que é que tu tá falando aí, mulher-macho?
Dalva levantou a vista e só então percebeu a presença do
grupo de meninos.
Os olhos dela ficaram brilhantes.
Eu e as outras meninas achamos que ela iria chorar.
Ela disse assim:
- O que tu falou aí:
E o menino respondeu:
- Mulher-macho!
E os outro meninos começaram a rir!
Foi quando percebemos que o brilho no olhar dela não eram lágrimas. Era ódio!
Dalva era realmente muito castigada pela vida. E
como disse Nietzsche, “Aquele que
luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro”.
Ela não era mais uma simples menininha...
Dalva não contou conversa! Catou o
garoto pelo braço e, usando um termo lá de Santana, “comeu ele na porrada”!!!
Ficamos todos pa-ra-li-sa-dos! Meninas e meninos!
Ela não foi sequer para a diretoria, pois o garoto era
reincidente e acredito que a diretora não aguentava mais reclamações dele, deve
ter dado graças a Deus que alguém deu um jeito naquela fera.
Voltamos para a sala de aula. Dalva estava como se nada de
anormal tivesse acontecido. E nós, como se tudo, tudo de mais diferente na vida
fosse possível.
Desde aquele dia a vida de cada menina naquela sala ganhou
um novo significado graças a Dalva.
O filho de Lúcifer ainda tentou correr atrás de mim
novamente, mas Dalva viu, rsrsrsr, pow, eu nunca fui a favor de violência, mas
foi revigorante ver a Dalva batendo nele e dizendo para ele nunca mais se
aproximar de mim sem a minha permissão!
Ela soube o que nós passávamos nas mãos deles e sabia a
gratidão que tínhamos a ela.
Desde então o ciclo se rompeu.
Dalva repetiu de ano novamente. A mãe a espancou mais uma
vez. E a tirou da escola.
Não, ela não estudou e virou uma juíza ou uma mega
empresária rica. Porque as histórias reais são diferentes da ficção.
A família dela passava na frente da casa de minha mãe todos
os dias empurrando um carrinho de ferro. Lembro de ver sua vó, sua mãe e seu
tio.
Mas não a via mais.
Tinha medo de sua mãe ter exagerado nas surras e ter
feito alguma coisa irreversível com ela... Não sei. Torço para ela ter fugido
de casa para bem longe. De ter construído uma outra vida.
Essas são as faces de Dalva e o que o garoto quis dizer com o
“mulher-macho”, é que ela parecia uma sapatão, uma caminhoneira como diz minha
amiga Ianna.
Para a mãe dela, ela era um peso, um estorvo, talvez uma
maldição.
Para nós, as meninas suas amigas, ela foi nossa defensora,
nossa protetora e a força para vencer um
mundo machista e hostil ao qual fomos expostas ainda tão crianças.
Para mim ela era a força, a garra e a beleza! Dalva era bonita. Era forte. Carregava tudo sozinha. E seus cabelos curtos eram revolucionários.
Mas olhando para ela com meus olhos de hoje, de uma mulher
adulta, Dalva era somente uma menininha de 8 anos, assustada, sozinha, que
encontrou na sua turma de 1ª série o acolhimento e a admiração que não conhecia.
A ela, toda a minha gratidão.
Esta é Dalva, vista pelos meus olhos, no espelho de mim.
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