Conheci Mário ainda na
infância. Morávamos na mesma rua. Seu pai era militar e foi transferido para o
Rio no início do novo século.
Era virada do ano e as
pessoas da rua costumavam fazer uma festa em conjunto, “juntar as panelas” como
minha mãe dizia.
Foi quando o vi pela
primeira vez. Ele era magrelo igual a mim. Cabelos e olhos castanhos. Nada o
diferenciava dos outros meninos, mas ao mesmo tempo, alguma coisa o fazia
único...
Algo me atraia para
ele. Eu brincava com os outros meninos, mas quando percebia, já estava olhando
em sua direção.
Resolvi ser gentil. Ele
estava sozinho, deslocado do grupo.
- Oi. Meu nome é
Aluysio. Sou seu vizinho da casa ao lado!
- Olá, meu nome é
Mário. Eu morava em Vitória.
- Prazer Mário. Você
quer brincar com a gente?
- Quero sim!
E foi assim nosso
primeiro contato.
Estudamos juntos
durante todo o colégio normal. E entramos juntos na Faculdade de Engenharia.
Seu pai queria que ele
fosse militar. Ele nunca quis.
Mário gostava das
artes. Queria ser escritor. Era poeta.
Seu pai jamais
aceitaria isso. A engenharia foi ideia minha. Como era algo que eu gostava,
prometi ajudar Mário e assim ele poderia também se dedicar à escrita
paralelamente e, quem sabe um dia seguir seu coração.
Mário tinha uma musa
inspiradora: Lulu. Era uma menina que ele conheceu na infância lá em Vitória e
que segundo ele, o dia que fosse independente iria reencontrá-la e casaria com
ela.
Todos os seus poemas
eram dedicados a ela, sua Lulu. A doce Lulu.
Parece meio
inconcebível, mas eu tinha uma espécie de ciúmes de Lulu, ficava imaginando se
algum dia alguém me amaria assim, se me esperaria uma vida inteira, se me
dedicaria seus melhores pensamentos e todo o seu tempo livre.
Na verdade, eu não
entendia o que se passava...
O pai de Mário era um
homem muito rígido, exigente com os filhos e com a esposa. Nunca o vi tratá-los
com um pouco mais de carinho, era sempre muito formal.
Já a mãe de Mário era a
doçura em pessoa. Extremamente carinhosa com os filhos e comigo, por tabela!
Mas tinha uma saúde muito frágil. Vivia sempre adoentada, tomando remédios e
frequentando médicos.
Quando eu e Mário
ficamos adultos e começamos a frequentar a noite, descobrimos para quem o pai
de Mário reservava seus carinhos... Ele era frequentador assíduo dos bordeis
cariocas, e os remédios que a mãe de Mário normalmente tomava, era para tratar
as doenças venéreas que ele, com a mesma frequência a infectava.
Esse era um dos
retratos de uma tradicional família brasileira da época... A que o pai queria
que Mário copiasse, cheia de preceitos morais, mas baseada em traições e
sofrimentos, porém, vista de fora como perfeita!
No dia que descobrimos
isso, Mário tomou seu primeiro porre! O pai dele não nos viu. Mário ficou muito
envergonhado pelo pai.
Eu não podia levá-lo
para minha casa, pois minha família não sabia que bebíamos.
Paguei uma noite em um
quarto de pensão.
Carreguei-o para dentro
do quarto. Ele não parava de falar e chorar.
Levei-o para o
banheiro. Tirei sua roupa e liguei o chuveiro.
Enquanto a água caia no
seu corpo eu o observava. Aquela sensação estranha do final do ano de 1899 me
veio novamente. Eu olhava para ele e sentia algo diferente. Eu nunca tinha
observado o corpo de um homem nu. Nem o meu mesmo.
E aquele homem estava
ali na minha frente. Sim, Mário não era mais um menino, era um homem. Um belo
homem, que mexia com meus instintos. Mas aquilo não era normal. Não podia ser.
Eu também era um homem. Deveria estar sentindo aquilo por uma mulher, não por
outro homem. Mas aquilo o quê? O quê eu estava sentindo?
Desejo. O nome era
desejo!
Foi isso que senti
quando vi Mário pela primeira vez e era isso que sentia naquele momento.
Mário não aguentou mais
ficar em pé no chuveiro. Tive que levá-lo para a cama.
Deitei-o. Cobri-o. Não
poderia me aproveitar de meu amigo.
Deitei no chão e deixei
que ele dormisse.
Mário acordou
atordoado. Vestiu-se rapidamente. Falou que precisava ir para casa.
Ele nunca me perguntou
o que havia acontecido aquela noite. Parece que pressentia que algo mais do que
uma simples amizade existia entre nós. Mas éramos tão jovens e era tudo tão
estranho... Como entender o que se passava em meu coração? Em meu corpo? E de
repente até o ciúme passou a dominar-me ao ouvir os seus poemas para a sua
amada.
“É fim de tarde. Vejo o
mar. Ele me lembra você. Seria a sua cor, a sua morenice que me transporta ao
ocaso?
Não, não é o ocaso. Não
é a festa de luz e cores. É a vida. É a imensidão de tudo que existe.
Ah, minha Lulu, você é
a vida e tudo que há, de uma forma ou de outra, me transporta até você.”
E ele fazia questão de
ler-me a cada novo poema, como se eu fosso o seu crítico literário pessoal.
Aquilo ia me martirizando. Mas eu não tinha coragem de falar. Não aguentaria
perder sua amizade.
Mário só falava em se
formar e ficar rico para ir embora para bem longe com seu único e grande amor.
E eu torcia para que esse dia nunca chegasse.
Um dia meus pais
viajaram e convidei Mário para jantar em casa. Tentaria cozinhar um peixe.
Seria minha primeira aventura na cozinha. Ele aceitou na hora. Adorava uma
aventura!
Coloquei o avental de
minha mãe e fomos para a cozinha. Abrimos um vinho e em meio a conversas e
risadas fiz o peixe.
Estávamos embalados em
um assunto quando de repente senti o cheiro de queimado. Corri para o fogão.
Era o peixe!
Havia virado carvão!
Apaguei o fogo e
coloquei a panela na pia com a torneira aberta!
Caímos na gargalhada!
Mário pegou na minha
cintura por trás e começou a brincar dizendo:
- Essa mulherzinha não
sabe nem cozinhar um peixe! Pobre dona de casa! Vai ter que ser engenheira!
Meu coração disparou.
Sei que pode parecer insano, mas naquele momento era tudo que eu gostaria de
ser.
Mário começou a rir e a
repetir o que havia falando como uma música. Foi quando começou a tossir sem
parar. E então vi o sangue em meu avental.
Era de sua boca.
Ficamos apavorados.
Tirei o avental e fomos para a casa dele correndo. O pai dele levou-o para o
hospital militar. Eu fui junto.
Ele ficou internado por
13 dias. E eu, pelo resto de minha vida.
Tuberculose. Mário não
resistiu.
Ninguém estava
preparado. Nunca estamos. Ele tinha 22 anos. Eu também.
Tranquei a faculdade de
engenharia. Decidi prestar Medicina. Dedicar minha vida a ajudar pessoas com
essa doença maldita.
Passei e comecei a
cursar. Estava indo bem, mas os pais de Mário resolveram ir embora do Rio e a
mãe dele quis me entregar sua caixa com os poemas. Ela sabia que ele
compartilhava comigo a vontade de ser escritor.
Foi como se eu tivesse
tido um novo e doloroso reencontro com ele, afinal, ele não estava sozinho,
junto estava a maldita Lulu, que me assombrou desde a adolescência.
Reli seus poemas, já
conhecia todos, ele sempre os lia para mim. Que raiva eu sentia daquela menina!
E senti uma ponta de raiva de Mário também. Será que ele nunca sentiu nada por
mim? Será que nunca foi capaz de perceber?
Eu lia os poemas e
alguma coisa dentro de mim ia dizendo que eu deveria procurar Lulu, descobrir
onde ela estava e entregar os poemas para ela. Ela precisava saber que alguém
um dia a amou tanto.
Foi quando meu coração
deu um sobressalto!
Minhas pernas
paralisaram! Era um poema que eu já conhecia, mas no final estava escrito
assim:
Minha
doce Lulu. Meu doce Aluysio.
Eu era a Lulu!
Meus olhos encheram de
lágrimas. Reli todos os poemas agora sob nova perspectiva e vi que era óbvio
que eram para mim! Como eu nunca percebi! Como fui tolo!
Mário, meu doce Mário!
Por que você nunca me disse?
Caí aos prantos.
A terapia não conseguiu
me ajudar...Religião, moral, preconceito. Os profissionais ainda não estão
preparados para tantas novas indagações.
Abandonei o curso de
Medicina e fiz Psicologia. Entendi que o que matou meu doce Mário não foi a
tuberculose. O que matou Mário ainda poderia matar muitos outros jovens
apaixonados e eu não poderia compactuar com isso.
Infelizmente, nunca
mais amei outra pessoa. Dediquei minha vida a ajudar jovens apaixonados que
assim como eu viveram engaiolados dentro de prisões sociais, encarcerados em
preconceitos e solitários pela falta de coragem de se declararem ao mundo e ao
seu amor.
Danilo ficou surpreso
ao terminar de ler o diário do tio avô de seu pai. Encontrou-o sem querer na
biblioteca do avô, escondido em uma capa falsa de um livro antigo.
Mesmo ainda com
lágrimas nos olhos, ele levantou-se e foi até a sala. Estavam todos reunidos jantando.
Seu pai, sua mãe e suas duas irmãs.
- Pai, mãe, eu sou gay.
Escrito em 17/10/2016, uma tarde de Primavera com sensação térmica de Verão