domingo, 18 de agosto de 2019

A mãe do Chico Buarque




Quando eu era criança e descobri Chico Buarque em um pequeno monte de vinis na oficina de meu pai que ficava no fundo do quintal de nossa casa, foi amor à primeira vista.
Eu havia aprendido a ler há pouco tempo, e dentro do disco vinha um encarte com as músicas. Lembro que a primeira música que li foi “A Rita.”
Em minha casa não havia aparelho de som para escutar os discos e nem sei a quem eles realmente pertenciam, se a meu pai ou meus irmãos, então eu me apaixonei na verdade pela poesia de Chico. Sua sensibilidade, sua empatia, seu profundo conhecimento sobre a alma feminina, o que me era tão novo, pois eu era somente uma menina, não fazia a menor ideia do que fosse ser uma mulher, mas a obra de Chico me dava “amostras grátis” de um futuro visceral, de entrega, paixão e principalmente resiliência e superação.
Eu ficava imaginando o seu processo de criação, o que ele teria sentido para poder escrever aquilo? Que tipo de emoção o teria tomado para ele produzir? E como ele era capaz de saber o que a outra pessoa sentiu?
E eu me via ali em cada uma dessas mulheres, que forjariam, em um futuro, muito da mulher que sou hoje.
Eu sabia a letra da Rita de cor, sem nunca tê-la ouvido uma vez sequer.
Eu sofria junto com as “Mulheres de Atenas”, queria muito dar um abraço fraterno e dizer o quanto a “Geni" era especial. Admirava a coragem de “Madalena”, mas eu queria mesmo era ser a “Rosa”. Nossa, eu a achava tudo de tudo. Audácia, desprendimento (eu não fazia a menor ideia do que fosse isso nem que essa palavra existisse, mas eu desejava uma vida assim).
As letras no feminino eram tão sofridas, demandavam tanto a energia das mulheres, que eu não queria aquilo pra mim. E a Rosa fugia de toda aquela descrição. Fugia desse lugarzinho deixado "gentilmente" para nós, pelos homens, na sociedade. Lugar que não nos cabe, mas que temos que ajustar daqui e dali para poder caber.
Não, definitivamente eu não era uma mulher de Atenas, eu desejava imensamente ser a Rosa.
Bem, um dia, finalmente conseguimos comprar um som e eu pude então ouvir a voz do Chico. Foi mágico. A voz não era magistral e envolvente como seus olhos azuis, mas era muito do que eu imaginava. Completamente real, de uma pessoa comum como eu. E Chico ficou cada vez mais próximo.
A partir dai eu o caçava em todas as rádios. Eu não tinha discos, nem poderia ter, ninguém daria pra uma menina entre 8 e 9 anos um disco do Chico Buarque, mas eu me contentava com o que eu conseguia a respeito dele.
Nesse período tive acesso a algumas de suas músicas de resistência, “Acorda amor”, “Roda Viva”, “Quando o carnaval chegar”, “Não sonho mais”,  e “Apesar de você”, que era a minha preferida. E na minha cabeça infantil, eu ficava me perguntando para quem ele teria escrito aquelas músicas? Quem oprimia e subjugava tanto o Chico a ponto dele vomitar toda aquela aflição em Dó menor?
Eu era a caçula da minha família de 6 irmãos, com uma diferença muito grande de idade entre nós, aproximadamente 19 anos entre mim e meu irmão mais velho.
Então, eu era praticamente a única criança em uma casa cheia de adultos.
Com 9 anos me foram dadas algumas responsabilidades pra ajudar em casa. E eu fazia da forma que sabia, mas nem sempre estava a contento dos demais.
Minha mãe era um mulher muito exigente e brava. Brigava por muito pouco. Estava sempre trabalhando fora e nos poucos dias de folga, queria colocar o serviço de casa em dia. Serviço que só ela enxergava, para nós estava tudo em ordem, mas para ela estava uma bagunça, tudo desarrumado e sujo e precisávamos organizar. E assim começavam os fins de semana infernais, de limpeza sem fim. E eu também tinha que ajudar, mas eu queria brincar. E fazia mal feito, pois além de não saber fazer, queria terminar logo. E aí começavam as reclamações e ameaças:
-    Você não presta atenção em nada, faz tudo mal feito, não posso contar com você, só quer saber de ficar correndo e pulando, não leva nada a sério, o que será no futuro? Que tipo de vida você terá desse jeito e blá blá blá…    
Eu não conseguia organizar meus sentimentos, mas hoje entendo que o que eu sentia poderia ser descrito com os seguintes questionamentos: “mas eu sou apenas uma criança. Tenho que ser boa em correr, pular e não levar nada a sério. Onde está o erro?
E eu me sentia infeliz e injustiçada.
Eu amava minha mãe quando ela me tratava bem e era carinhosa, mas quando ela me chamava a atenção ou brigava comigo, eu a achava uma tirana, cruel e desumana. Quase uma madrastra…eu sempre fui bastante exagerada…mas era esse o meu sentimento.
Foi por conta disso que eu afinal consegui solucionar um dos mistérios que sondava a minha pequena existência infantil…
Descobri afinal para quem Chico fazia aquelas músicas de pavor e sofrimento…
Sua mãe! 
Nossa, como era óbvio! Como eu demorei tanto tempo pra descobrir aquilo? E como eu era genial…
Me senti tão orgulhosa da minha inteligência e perspicácia! Eu era uma menina beeem à frente do meu tempo! Somente os adultos deveriam ter entendido que Chico compusera muitos músicas para sua mãe. E eu, apesar de tão pequena, também consegui entender!


Gente, como Chico era sofrido! Tadinho do Chico… Olha que eu achava a minha mãe ruim, mas a mãe do Chico… Ninguém merecia uma mãe tão cruel!
E meu amor por ele aumentava em meio à empatia que crescia a cada nova música de resistência que eu ia sendo apresentada.
E fui descobrindo outros compositores que tinham mães difíceis também: Gil, Geraldo Vandré, Geraldo Azevedo…
Mas meus navios estavam ancorados em Chico. E eu me identificava e cantava mentalmente pra minha mãe: “hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão, não…”
E isso me fortalecia, pois eu não me sentia mais sozinha naquele mundo tão hostil.
Então comecei a prestar mais atenção nas letras: muito mais que de sofrimento, elas falavam em luta e principalmente resistência! Era isso, Chico queria me dizer para que eu não desistisse, só me “guardasse pra quando o carnaval chegar”…
Como ele era genial!
E assim me tornei uma criança cheia de resistência e muitas esperanças em um futuro bom.
E a vida foi se tornando um pouco mais leve, mais alegre e com promessas de novas oportunidades num futuro que um dia chegaria.
E isso me ajudou até a aceitar melhor minha vida, afinal, o que eram as brigas da minha mãe perto de toda a crueldade imposta pela mãe de Chico?
Pobres olhos azuis…”amanhã, vai ser outro dia’!

Dedicado à Cezarina da Silva Oliveira e Maria Amélia Buarque de Hollanda.