domingo, 22 de janeiro de 2017

O doce poeta Mário

Conheci Mário ainda na infância. Morávamos na mesma rua. Seu pai era militar e foi transferido para o Rio no início do novo século.

Era virada do ano e as pessoas da rua costumavam fazer uma festa em conjunto, “juntar as panelas” como minha mãe dizia.

Foi quando o vi pela primeira vez. Ele era magrelo igual a mim. Cabelos e olhos castanhos. Nada o diferenciava dos outros meninos, mas ao mesmo tempo, alguma coisa o fazia único...

Algo me atraia para ele. Eu brincava com os outros meninos, mas quando percebia, já estava olhando em sua direção.

Resolvi ser gentil. Ele estava sozinho, deslocado do grupo.
- Oi. Meu nome é Aluysio. Sou seu vizinho da casa ao lado!
- Olá, meu nome é Mário. Eu morava em Vitória.
- Prazer Mário. Você quer brincar com a gente?
- Quero sim!
E foi assim nosso primeiro contato.

Estudamos juntos durante todo o colégio normal. E entramos juntos na Faculdade de Engenharia.

Seu pai queria que ele fosse militar. Ele nunca quis.
Mário gostava das artes. Queria ser escritor. Era poeta.
Seu pai jamais aceitaria isso. A engenharia foi ideia minha. Como era algo que eu gostava, prometi ajudar Mário e assim ele poderia também se dedicar à escrita paralelamente e, quem sabe um dia seguir seu coração.

Mário tinha uma musa inspiradora: Lulu. Era uma menina que ele conheceu na infância lá em Vitória e que segundo ele, o dia que fosse independente iria reencontrá-la e casaria com ela.
Todos os seus poemas eram dedicados a ela, sua Lulu. A doce Lulu.

Parece meio inconcebível, mas eu tinha uma espécie de ciúmes de Lulu, ficava imaginando se algum dia alguém me amaria assim, se me esperaria uma vida inteira, se me dedicaria seus melhores pensamentos e todo o seu tempo livre.
Na verdade, eu não entendia o que se passava...

O pai de Mário era um homem muito rígido, exigente com os filhos e com a esposa. Nunca o vi tratá-los com um pouco mais de carinho, era sempre muito formal.
Já a mãe de Mário era a doçura em pessoa. Extremamente carinhosa com os filhos e comigo, por tabela! Mas tinha uma saúde muito frágil. Vivia sempre adoentada, tomando remédios e frequentando médicos.
Quando eu e Mário ficamos adultos e começamos a frequentar a noite, descobrimos para quem o pai de Mário reservava seus carinhos... Ele era frequentador assíduo dos bordeis cariocas, e os remédios que a mãe de Mário normalmente tomava, era para tratar as doenças venéreas que ele, com a mesma frequência a infectava.
Esse era um dos retratos de uma tradicional família brasileira da época... A que o pai queria que Mário copiasse, cheia de preceitos morais, mas baseada em traições e sofrimentos, porém, vista de fora como perfeita!

No dia que descobrimos isso, Mário tomou seu primeiro porre! O pai dele não nos viu. Mário ficou muito envergonhado pelo pai.
Eu não podia levá-lo para minha casa, pois minha família não sabia que bebíamos.
Paguei uma noite em um quarto de pensão.
Carreguei-o para dentro do quarto. Ele não parava de falar e chorar.
Levei-o para o banheiro. Tirei sua roupa e liguei o chuveiro.
Enquanto a água caia no seu corpo eu o observava. Aquela sensação estranha do final do ano de 1899 me veio novamente. Eu olhava para ele e sentia algo diferente. Eu nunca tinha observado o corpo de um homem nu. Nem o meu mesmo.
E aquele homem estava ali na minha frente. Sim, Mário não era mais um menino, era um homem. Um belo homem, que mexia com meus instintos. Mas aquilo não era normal. Não podia ser. Eu também era um homem. Deveria estar sentindo aquilo por uma mulher, não por outro homem. Mas aquilo o quê? O quê eu estava sentindo?
Desejo. O nome era desejo!
Foi isso que senti quando vi Mário pela primeira vez e era isso que sentia naquele momento.
Mário não aguentou mais ficar em pé no chuveiro. Tive que levá-lo para a cama.
Deitei-o. Cobri-o. Não poderia me aproveitar de meu amigo.
Deitei no chão e deixei que ele dormisse.
Mário acordou atordoado. Vestiu-se rapidamente. Falou que precisava ir para casa.

Ele nunca me perguntou o que havia acontecido aquela noite. Parece que pressentia que algo mais do que uma simples amizade existia entre nós. Mas éramos tão jovens e era tudo tão estranho... Como entender o que se passava em meu coração? Em meu corpo? E de repente até o ciúme passou a dominar-me ao ouvir os seus poemas para a sua amada.

“É fim de tarde. Vejo o mar. Ele me lembra você. Seria a sua cor, a sua morenice que me transporta ao ocaso?
Não, não é o ocaso. Não é a festa de luz e cores. É a vida. É a imensidão de tudo que existe.
Ah, minha Lulu, você é a vida e tudo que há, de uma forma ou de outra, me transporta até você.”

E ele fazia questão de ler-me a cada novo poema, como se eu fosso o seu crítico literário pessoal. Aquilo ia me martirizando. Mas eu não tinha coragem de falar. Não aguentaria perder sua amizade.

Mário só falava em se formar e ficar rico para ir embora para bem longe com seu único e grande amor. E eu torcia para que esse dia nunca chegasse.

Um dia meus pais viajaram e convidei Mário para jantar em casa. Tentaria cozinhar um peixe. Seria minha primeira aventura na cozinha. Ele aceitou na hora. Adorava uma aventura!
Coloquei o avental de minha mãe e fomos para a cozinha. Abrimos um vinho e em meio a conversas e risadas fiz o peixe.
Estávamos embalados em um assunto quando de repente senti o cheiro de queimado. Corri para o fogão. Era o peixe!
Havia virado carvão!
Apaguei o fogo e coloquei a panela na pia com a torneira aberta!
Caímos na gargalhada!
Mário pegou na minha cintura por trás e começou a brincar dizendo:
- Essa mulherzinha não sabe nem cozinhar um peixe! Pobre dona de casa! Vai ter que ser engenheira!
Meu coração disparou. Sei que pode parecer insano, mas naquele momento era tudo que eu gostaria de ser.
Mário começou a rir e a repetir o que havia falando como uma música. Foi quando começou a tossir sem parar. E então vi o sangue em meu avental.  Era de sua boca.
Ficamos apavorados. Tirei o avental e fomos para a casa dele correndo. O pai dele levou-o para o hospital militar. Eu fui junto.
Ele ficou internado por 13 dias. E eu, pelo resto de minha vida.

Tuberculose. Mário não resistiu.
Ninguém estava preparado. Nunca estamos. Ele tinha 22 anos. Eu também.
Tranquei a faculdade de engenharia. Decidi prestar Medicina. Dedicar minha vida a ajudar pessoas com essa doença maldita.
Passei e comecei a cursar. Estava indo bem, mas os pais de Mário resolveram ir embora do Rio e a mãe dele quis me entregar sua caixa com os poemas. Ela sabia que ele compartilhava comigo a vontade de ser escritor.

Foi como se eu tivesse tido um novo e doloroso reencontro com ele, afinal, ele não estava sozinho, junto estava a maldita Lulu, que me assombrou desde a adolescência.
Reli seus poemas, já conhecia todos, ele sempre os lia para mim. Que raiva eu sentia daquela menina! E senti uma ponta de raiva de Mário também. Será que ele nunca sentiu nada por mim? Será que nunca foi capaz de perceber?

Eu lia os poemas e alguma coisa dentro de mim ia dizendo que eu deveria procurar Lulu, descobrir onde ela estava e entregar os poemas para ela. Ela precisava saber que alguém um dia a amou tanto.
Foi quando meu coração deu um sobressalto!
Minhas pernas paralisaram! Era um poema que eu já conhecia, mas no final estava escrito assim:
Minha doce Lulu. Meu doce Aluysio.
Eu era a Lulu!

Meus olhos encheram de lágrimas. Reli todos os poemas agora sob nova perspectiva e vi que era óbvio que eram para mim! Como eu nunca percebi! Como fui tolo!
Mário, meu doce Mário! Por que você nunca me disse?
Caí aos prantos.

A terapia não conseguiu me ajudar...Religião, moral, preconceito. Os profissionais ainda não estão preparados para tantas novas indagações.

Abandonei o curso de Medicina e fiz Psicologia. Entendi que o que matou meu doce Mário não foi a tuberculose. O que matou Mário ainda poderia matar muitos outros jovens apaixonados e eu não poderia compactuar com isso.

Infelizmente, nunca mais amei outra pessoa. Dediquei minha vida a ajudar jovens apaixonados que assim como eu viveram engaiolados dentro de prisões sociais, encarcerados em preconceitos e solitários pela falta de coragem de se declararem ao mundo e ao seu amor.

Danilo ficou surpreso ao terminar de ler o diário do tio avô de seu pai. Encontrou-o sem querer na biblioteca do avô, escondido em uma capa falsa de um livro antigo.

Mesmo ainda com lágrimas nos olhos, ele levantou-se e foi até a sala. Estavam todos reunidos jantando. Seu pai, sua mãe e suas duas irmãs.
- Pai, mãe, eu sou gay.



Escrito em 17/10/2016, uma tarde de Primavera com sensação térmica de Verão

2 comentários:

  1. Uma bela história. Difícil comentar sem criar um limite, sem diminuir sua extensão infinita em torno de algo tão caro nesse tempo de contradições que vive a sociedade. Como peça literária ela é doce e serena como um rio de aldeia que a cada curva revela uma paisagem inusitada, uma montanha, um vale, uma árvore florida ou pedras ardendo ao sol. Como ativismo, revela com romantismo segredos inauditos, verdades da vida privada, tão evidentes quanto invisíveis(?). A verdade é que a verdade revelada assombra a sociedade patriarcal. Gostei.

    ResponderExcluir
  2. Obrigada pela poesia e beleza de seu doce comentário

    ResponderExcluir